sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Revues.org





Fiquei tão emocionado com os comentários aos meus dois posts anteriores, que vou postar mais um. Perdoem lá a redundância, mas, por acaso, este novo site até cumpre a função central deste blog. Trata-se de uma organização online onde estão associadas várias revistas como a Astérion. Chama-se Revues.org. Provavelmente já deram com ele, porque a página da Astérion tem lá o link. Se não viram ou não tiveram curiosidade, ficam desde já a saber, que a Revue.org tem muitas revistas de acesso gratuito.
O "sítio" justifica o post porque, ele próprio, permite a transversalidade disciplinar que aqui nos é tão cara. É relativamente simples verificar a área temática de cada uma simplesmente pelo título. Tem revistas para todos os gostos académicos. Como a Astérion poderá haver outras com a mesma qualidade em história, filologia, religião, ciência, antropologia, estudos literários, etc., e que tenham artigos que vos possam interessar.

P.S. Desculpem lá os posts sucessivos com simples links, mas uma pessoa apanha o vício do post e depois é difícil resistir. E já vão 16 posts! Ganda blog!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Les Bibliothèques Virtuelles Humanistes


Esqueci-me no post abaixo de referir outra descoberta (era, na verdade, só para acrescentar mais um post): Les Bibliothèques Virtuelles Humanistes. Não há muito a dizer sobre este projecto. Se já verificaram os links aqui ao lado, já sabem o que podem esperar. Trata-se de mais um site que disponibiliza bibliografia sem direitos de autor. Neste tipo de projecto o que varia é, sobretudo, o conteúdo.

Ora, o conteúdo deste talvez interesse a alguns de vós em particular. Trata-se de bibliografia dos séculos XVI e XVII, desde, simplesmente, os clássicos renascentistas, até alguns textos importantes sobre religião, ciência ou jurisprudência. Ainda tem música, história, geografia, etc...

Entretanto também vou colocar o link aqui ao lado. -------->

Revista Astérion









Numa das minhas pesquisas deparei-me com esta revista online. A Astérion é uma revista exclusivamente online. É uma revista de filosofia, história das ideias e filosofia política. Tem já 5 números e conta com alguns autores conhecidos. O melhor é que dá para descarregar os números todos em pdf, ou, se preferirem, apenas o artigo que vos interessar. É um site bem concebido. É totalmente em francês. Se não souberem ler, é uma boa oportunidade para irem aprender só para ler esta revista.
Deixo-vos o título dos números, embora possam confirmar no próprio site:

Liste des numéros proposés en téléchargement :

Astérion, n° 1, juin 2003, dossier : « Usages philosophiques de la maladie et de la médecine de l'antiquité à l'âge classique »

Astérion, n° 2, juillet 2004, dossier : « Barbarisation et humanisation de la guerre »

Astérion n° 3, septembre 2005, dossier : « Spinoza et le corps »

Astérion n° 4, avril 2006, dossier : « La crise du droit sous la République de Weimar et sous le national-socialisme »

Astérion n° 5, juillet 2007, dossier : « Le philosophe et le marchand »

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Por falar em Espinosa...



Em 1988, Gilles Deleuze, que não gostava de aparecer nos media, aceitou gravar uma entrevista com Claire Parnet, sua aluna "íntima", com a condição de o filme, daí resultante (produzido e realizado por Pierre-André Boutang), só poder ser publicado depois da sua morte, que aconteceria em 1995. A entrevista tem um método interessante e original. Foi proposta ao filósofo uma palavra para cada letra do alfabeto, que ele deveria comentar. Em 2004, as Éditions Montparnasse organizaram a edição pública dessa longa entrevista em três DVD. Recomendo, porque se trata não só de um documento de valor histórico e filosófico, mas porque o formato é muito confortável para os espectadores, na medida em que, muito de acordo com o pensamento deleuziano, não tem propriamente princípio nem fim, podendo ver-se uma letra ao acaso de cada vez, sem o perigo de perder o fio à meada.
A propósito da letra J, como "Joie" (Alegria), ele fala de Espinosa, o filósofo por quem Deleuze tinha uma predilecção muito especial. Pode ver-se aqui um excerto de L'Abécédaire de Gilles Deleuze.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Caute, o emblema de Espinosa


Cautelosamente, batemos à porta do filósofo, com receio de interromper a sua meditação solitária. Ao abrir-nos a porta, reparamos no anel que lhe assenta num dos dedos: é a sua marca pessoal, onde se lê, para além das iniciais do seu nome, a palavra latina caute.
À primeira vista, parece que o filósofo quer apenas proteger-se das acusações de heresia que a comunidade judaica lhe poderá dirigir. Não é esse o maior intuito da divisa espinosiana caute. Ela enquadra-se na reforma do entendimento, que aconselha ao filósofo usar de prudência nos pensamentos e na vida. O que o homem vulgar procura – os prazeres efémeros – acaba por perturbar o entendimento no seu caminho para a perfeição. No entanto, como o filósofo não pode deixar de viver em sociedade, ele próprio tem que se adaptar e falar e agir de acordo com o saber comum, procurar os prazeres e bens materiais indispensáveis para perseverar no seu ser, em suma, manter-se em paz com os costumes da sociedade, mas sem nunca perder de vista o fim último da “fruição eterna da suprema e contínua alegria”, que só o verdadeiro bem pode proporcionar.
O conhecimento que leva à perfeição acaba por ser, assim, uma experiência íntima que o filósofo persegue em solidão, do ponto de vista intelectual. Faz parte da sua sabedoria mostrar prudência quando se trata de exteriorizar os seus pensamentos, ele não tem necessidade de se impor nem de se exibir.
Espinosa dissimula, Espinosa oculta-se, e é lá na eternidade que o podemos procurar. Cautelosamente.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

"What is Political Philosophy?"

28 de NOVEMBRO

10h00
Sessão de Abertura
António Marques (Director do IFL)

10h15 - 13h00

Reflexões Darwinianas sobre a Sociedade
João Paulo Monteiro (IFL - FCSH, Univ. Nova de Lisboa)

As Tarefas da Filosofia e o Desejo dos Intelectuais
Edmundo Balsemão Pires (Universidade de Coimbra)

A Filosofia Política e a Democracia
Miguel Morgado (Universidade Católica)

Ambiguidades da Filosofia Política de Rawls
Regina Queiroz (Universidade Lusófona/IFL)

Moderador: Rui Bertrand Romão

15h00 - 17h30
Sócrates Ignorava os Dez Mandamentos, ou uma Proposta Modesta Sobre os Caminhos Passados e Futuros da Filosofia Política
Luís Salgado de Matos (ICS/ Universidade de Lisboa)

Entre a Filosofia Política e a Teoria Política: a Proposta Pluralista de Isaiah Berlin
José Tomaz Castello-Branco (Universidade Católica)

Filosofia Política e Arte de Escrever em Leo Strauss
António Bento (Universidade da Beira Interior)

A Filosofia Política para lá do Estado-Nação
Tiago Araújo (Diplomata)

Moderador: João Tiago Proença

18h00

L'Objet de la Philosophie Politique à l' Époque de l'Achèvement Européen de la Souveraineté
Conferência de Gérard Mairet (Université Paris 8)

Moderador: Diogo Pires Aurélio

29 de NOVEMBRO

10h00 - 13h00
Grotius e Spinoza, Política sem Metafísica ou Política em Metafísica?
André Santos Campos (Doutorando na Univ. de Lisboa)

Kant, a Política e a História
Paulo Tunhas (Univ. Fernando Pessoa/ IFL)

Paradoxos da Filosofia Política
Rui Bertrand Romão (Universidade da Beira Interior/ IFL)

A Filosofia Política e o Futuro Indefinido
João Cardoso Rosas (Universidade do Minho)

Moderador: Regina Queiroz

15h00 - 17h30
A Política da Filosofia Política
Alexandre Franco de Sá (Universidade de Coimbra)

A Desarmonia dos Dias Filosofia Política, Ideologia e Kitsch
João Tiago Proença (IFL)

O Ataque à Política
Alexandre Vaz Pereira (ex-doutorando na Univ. de Florença)

Filosofia e Ciência Política: Limites e Cruzamentos
Diogo Pires Aurélio (FCSH/IFL)

Moderador: Paulo Tunhas

18h00
Living with Strangers
Conferência de Lynn Dobson (University of Edinburgh)

Moderador: João Paulo Monteiro

19h00
Encerramento

Comissão Organizadora (IFL)
Diogo Pires Aurélio, João Tiago Proença, Regina Queiroz

[Decidi "postar" este anúncio do IFL por razões auto-evidentes e por pensar que tem interesse público.]

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A origem das "passagens"

A. Fourier ou les passages

I

"De ces palais les colonnes magiques
A l’amateur montrent de toutes parts,
Dans les objets qu’étalent leurs portiques,
Que l’industrie est rivale des arts."
Nouveaux Tableaux de Paris. Paris 1828, p. 27.


La majorité des passages sont construits à Paris dans les quinze années qui suivent 1822. La première condition pour leur développement est l’apogée du commerce des tissus. Les magasins de nouveautés, premiers établissements qui ont constamment dans la maison des dépôts de marchandises considérables, font leur apparition. Ce sont les précurseurs des grands magasins. C’est à cette époque que Balzac fait allusion lorsqu’il écrit : « Le grand poème de l’étalage chante ses strophes de couleurs depuis la Madeleine jusqu’à la porte Saint-Denis. » Les passages sont des noyaux pour le commerce des marchandises de luxe. En vue de leur aménagement l’art entre au service du commerçant. Les contemporains ne se lassent pas de les admirer. Longtemps ils resteront une attraction pour les touristes. Un Guide illustré de Paris di
t : « Ces passages, récente invention du luxe industriel, sont des couloirs au plafond vitré, aux entablements de marbre, qui courent à travers des blocs entiers d’immeubles dont les propriétaires se sont solidarisés pour ce genre de spéculation. Des deux côtés du passage, qui reçoit sa lumière d’en haut, s’alignent les magasins les plus élégants, de sorte qu’un tel passage est une ville, un monde en miniature. » C’est dans les passages qu’ont lieu les premiers essais d’éclairage au gaz.

La deuxième condition requise pour le développement des passages est fournie par les débuts de la construction métallique. Sous l’Empire on avait considéré cette technique comme une contribution au renouvellement de l’architecture dans le sens du classicisme grec. Le théoricien de l’architecture Boetticher, exprime le sentiment général lorsqu’il dit que : « quant aux formes d’art du nouveau système, le style hellénique » doit être mis en vigueur. Le style Empire est le style du terrorisme révolutionnaire pour qui l’État est une fin en soi. De même que Napoléon n’a pas compris la nature fonctionnelle de l’État en tant qu’instrument de pouvoir pour la bourgeoisie, de même les architectes de son époque n’ont pas compris la nature fonctionnelle du fer, par où le principe constructif acquiert la prépondérance dans l’architecture. Ces architectes construisent des supports à l’imitation de la colonne pompéienne, des usines à l’imitation des maisons d’habitation, de même que plus tard les premières gares affecteront les allures d’un chalet. La construction joue le rôle du subconscient. Néanmoins le concept de l’ingénieur, qui date des guerres de la révolution commence à s’affirmer et c’est le début des rivalités entre constructeur et décorateur, entre l’École Polytechnique et l’École des Beaux-Arts. – Pour la première fois depuis les Romains un nouveau matériau de construction artificiel, le fer, fait son apparition. Il va subir une évolution dont le rythme au cours du siècle va en s’accélérant. Elle reçoit une impulsion décisive au jour où l’on constate que la locomotive – objet des tentatives les plus diverses depuis les années 1828-29 – ne fonctionne utilement que sur des rails en fer. Le rail se révèle comme la première pièce montée en fer, précurseur du support. On évite l’emploi du fer pour les immeubles et on l’encourage pour les passages, les halls d’exposition, les gares – toutes constructions qui visent à des buts transitoires.

II


"Rien d’étonnant à ce que tout intérêt de masse, la première fois qu’il monte sur l’estrade, dépasse de loin dans l’idée ou la représentation que l’on s’en fait ses véritables bornes."
Marx et Engels : La Sainte-Famille.

La plus intime impulsion donnée à l’utopie fouriériste, il faut la voir dans l’apparition des machines. Le phalanstère devait ramener les hommes à un système de rapports où la moralité n’a plus rien à faire. Néron y serait devenu un membre plus utile de la société que Fénelon. Fourier ne songe pas à se fier pour cela à la vertu, mais à un fonctionnement efficace de la société dont les forces motrices sont les passions. Par les engrenages des passions, par la combinaison complexe des passions mécanistes avec la passion cabaliste, Fourier se représente la psychologie collective comme un mécanisme d’horlogerie. L’harmonie fouriériste est le produit nécessaire de ce jeu combiné.

Fourier insinue dans le monde aux formes austères de l’Empire, l’idylle colorée du style des années trente. Il met au point un système où se mêlent les produits de sa vision colorée et de son idiosyncrasie des chiffres. Les « harmonies » de Fourier ne se réclament en aucune manière d’une mystique des nombres prise dans une tradition quelconque. Elles sont en fait directement issues de ses propres décrets : élucubrations d’une imagination organisatrice, qui était extrêmement développée chez lui. Ainsi il a prévu la signification du rendez-vous pour le citadin. La journée des habitants du phalanstère s’organise non pas de chez eux, mais dans des grandes salles semblables à des halls de la Bourse, où les rendez-vous sont ménagés par des courtiers.
œ
Dans les passages Fourier a reconnu le canon architectonique du phalanstère. C’est ce qui accentue le caractère « empire » de son utopie, que Fourier reconnaît lui-même naïvement : « L’état sociétaire sera dès son début d’autant plus brillant qu’il a été plus longtemps différé. La Grèce à l’époque des Solon et des Périclès pouvait déjà l’entreprendre. » Les passages qui se sont trouvés primitivement servir à des fins commerciales, deviennent chez Fourier des maisons d’habitation. Le phalanstère est une ville faite de passages. Dans cette « ville en passages » la construction de l’ingénieur affecte un caractère de fantasmagorie. La « ville en passages » est un songe qui flattera le regard des parisiens jusque bien avant dans la seconde moitié du siècle. En 1869 encore, les « rues galeries » de Fourier fournissent le tracé de l’utopie de Moilin Paris en l’an 2000. La ville y adopte une structure qui fait d’elle avec ses magasins et ses appartements le décor idéal pour le flâneur.

Marx a pris position en face de Carl Grün pour couvrir Fourier et mettre en valeur sa « conception colossale de l’homme ». Il considérait Fourier comme le seul homme à côté de Hegel qui ait percé à jour la médiocrité de principe du petit bourgeois. Au dépassement systématique de ce type chez Hegel correspond chez Fourier son anéantissement humoristique. Un des traits les plus remarquables de l’utopie fouriériste c’est que l’idée de l’exploitation de la nature par l’homme, si répandue à l’époque postérieure, lui est étrangère. La technique se présente bien plutôt pour Fourier comme l’étincelle qui met le feu aux poudres de la nature. Peut-être est-ce là la clé de sa représentation bizarre d’après laquelle le phalanstère se propagerait « par explosion ». La conception postérieure de l’exploitation de la nature par l’homme est le reflet de l’exploitation de fait de l’homme par les propriétaires des moyens de production. Si l’intégration de la technique dans la vie sociale a échoué, la faute en est à cette exploitation.


[Decidi reproduzir aqui o primeiro capítulo da versão francesa de 1939 do texto "Paris, capitale du XIXe siècle" de Walter Benjamin, que serviu de inspiração ao nome deste blog. Em 1935 havia sido escrita a versão original em alemão, a pedido de Friedrich Pollock, para o Instituto de Investigação Social de Frankfurt. O texto integral encotnra-se aqui: Paris, Capitale du XIXe Siècle
Ainda um texto do filósofo francês Michel Guérin sobre as "passagens" de Walter Benjamin, publicado no Outono do ano 2000, na revista Les Pensées de Midi, cujos primeiros 16 números estáo disponíveis online: Passage Walter Benjamin
.]

O "misantropo sublime"

"Géométrie. Finesse.
La vraie éloquence se moque de l'éloquence, la vraie morale se moque de la morale: c'est-à-dire que la morale du jugement se moque de la morale de l'esprit qui est sans règles.
Car le jugement est celui à qui appartient le sentiment, comme les sciences appartiennent à l'esprit. La finesse est la part du jugement, la géométrie est celle de l'esprit.
Se moquer de la philosophie, c'est vraiment philosopher."
[Blaise Pascal, "Pensées", §467 (M.Lg.), §671 (P.S.), §513 (Laf.)]

No nº deste mês da Magazine Littéraire (juro que não me pagam para fazer publicidade), o dossier é dedicado pela primeira vez desde o seu aparecimento, em 1966, ao "pensador" Blaise Pascal. "Pensador" é na verdade a palavra mais adequada, na medida em que ele pensou as matemáticas e a física, mas também a moral, a filosofia, a retórica, os jogos da política e a teologia. Os "Pensamentos" são os escritos mais célebres do filho de Étienne Pascal (também este um eminente matemático da primeira metade do séc. XVII), mas ele foi também o autor de uma série de cartas que agitaram a polémica entre Jansenistas e Jesuítas e que, segundo alguns, terão sido a incubadora do francês moderno: as "Provinciais". Escreveu uma série de tratados sobre geometria, inventou o cálculo de probabilidades e a "máquina aritmética" ou "Pascalina" (o antepassado mais próximo da nossa máquina de calcular, que permitiria um dia inventar o computador), projectou o primeiro sistema de transportes públicos para a cidade de Paris e depois de uma conversão ao jansenismo, decidiu escrever uma Apologia da Religião Cristã, exilando-se ocasionalmente na abadia de Port-Royal-des-Champs. Essa haveria de ficar incompleta, devido a um estado de saúde sempre precário que levaria Pascal à morte antes de completar os seus 40 anos. Desse projecto inacabado sobrariam fragmentos editados postumamente, por membros de Port-Royal, sob o nome de "Pensées de M. Pascal sur la réligion et sur quelques autres sujets". À sua morte, foi encontrado um papel cozido no interior da sua roupa, denominado "Mémorial", o registo literário da sua experiência mística de 23 de Novembro de 1654, a sua "noite de fogo".
Admirado o seu génio precoce para as matemáticas, pela nata da sociedade científica e mundana de Paris, respeitado mais tarde o seu rigor moral e fervor religioso, pelos seguidores de Jansénius, Blaise Pascal não deixa ainda hoje de espantar pelo espírito geométrico das suas reflexões rigorosas e pelo espírito de subtileza (finesse) com que compôs algumas das páginas mais penetrantes da literatura e da filosofia do século XVII. Filosofia, porque mesmo (ou sobretudo) quando escreveu contra ela, ele filosofava. E quando se diz que Pascal escreveu contra a filosofia, o mesmo é dizer que foi um dos maiores críticos de Descartes, pois o paradigma filosófico da época era o cartesiano. Porém, não foi só contra Descartes que escreveu mas contra os pensadores libertinos que circulavam nos meios mundanos e de quem foram herdeiros alguns filósofos do séc. XVIII.
No século das luzes, erguer-se-iam por sua vez algumas vozes contra Pascal. O mais cínico e anglo-saxónico dos pensadores franceses, Voltaire, lançaria sobre ele as suspeitas de ser um cristão dogmático e perigoso que apenas pintou a humanidade de cores negras e pútridas e que por isso o elegera como o inimigo do género humano, um "misantropo sublime" (Cf. Magazine Littéraire, nº 469, p. 33). Diderot e D'Alembert haveriam de reabilitar Pascal, mas sobretudo pelas suas qualidades literárias e de matemático genial. Manejando como Voltaire a "arte de persuadir", Condorcet consegue transformar o apologista da religião cristã num ateu (não terá sido o único a pensar assim) e, na passagem para o séc. XIX, há quem veja nele um poeta romântico. Nesse século haveria a necessidade de re-editar as "Pensées" numa perspectiva mais literária e menos apologista, mas só no século XX se fizeram esforços filológica e arqueologicamente rigorosos para as editar. [Durante metade do século XX as edições Brunschvicg e Tourneur-Anzieu levaram os "Pensamentos" aos seus leitores (Valery, Camus, etc); mas a partir de meados do século, Lafuma, Pierre Mesnard, Michel Le Guern e Philippe Sellier são as mais fiáveis.]
Hoje em dia, há um novo interesse pelo autor, como revela o facto de se estar a preparar uma peça de teatro a partir das "Provinciales", ter sido feito um filme este ano sobre Port-Royal e continuarem a sair livros sobre e a partir de Blaise Pascal.
Falei deste assunto, por um lado, porque como sabem é um dos autores que mais me está a ocupar neste momento e porque a sua especificidade nos leva a pensar de novo esses limites entre Filosofia e Literatura, mas também e sobretudo Filosofia e Teologia, cujo post está mesmo aí a chegar. Talvez.
E são só 6,20€.

domingo, 28 de outubro de 2007

3ª Episódio BBC- Nietzsche

Desculpem lá o hiato temporal entre os episódios, mas tem uma justificação quase plausível. O ficheiro é grande e eu queria uploudá-lo (perdoem lá o neologismo disparatado) por inteiro. Acontece que a minha net, porque vivo numa zona periférica aos grandes centros urbanos, não tem a mesma qualidade. Assim, volta e meia, vá, talvez apenas uma volta, ela vai abaixo e cancela o upload. Assim sendo, e depois de muito tempo de angústia, decidi uploudá-lo no rapidshare em quatro partes. Eu sei que é muito e tentei evitá-lo. Mas demorava umas cinco horas no megaupload e a net ia abaixo. Tenham lá paciência e aproveitem.

"Esse escrito, que nem chega a ter cento e cinquenta páginas, de tom sereno e fatídico, um demónio que ri - obra de tão poucos dias que hesito em dizer o seu número -, é a excepção entre os livros em geral: não há nada mais rico em substância, mais independente, mais demolidor... nem mais maldoso. Se alguém quiser fazer rapidamente uma ideia de como tudo, antes de mim, estava posto às avessas, pois comece por ler este escrito. Aquilo, que no fronstispício se intitula Ídolos, é, muito simplesmente, o que, até então, se chamava verdade. O Crepúsculo dos Ídolos - falando sem rodeios: vai-se acabar a velha verdade."

F. Nietzsche, "Como se filosofa com o martelo", in Ecce Homo, Relógio d´Àgua, Lisboa, 2000, p.220

Nietzsche I
Nietzsche II
Nietzsche III
Nietzsche IV

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O Nobel foi ver a bola

Este post não é bem sobre filosofia. Bom, não é bem sobre nada. É, digamos, uma coisa daquelas que, muitas vezes, se diz com espírito e graça que é uma não-coisa. Pois bem, é um não-post. É um não-post sobre Camus. Acontece que, andava eu há poucos minutos no Youtube, e encontro um video de uma entrevista com o Albert Camus. Qual não é o espanto quando a entrevista é feita em pleno estádio de futebol, algures na Argélia, terra natal do filósofo-romancista (cá estamos nós outra vez!), durante um jogo. Como vêem, não há absolutamente nada de filosófico neste não-post. Acabo até de justificar a sua não-pertinência. É apenas engraçado e uma das raras imagens captadas em video dele. Segue o video.

domingo, 14 de outubro de 2007

Querelas entre filósofos

Este "blog" é atravessado por uma lógica histórico-filosófica, não, porém, no sentido dogmático, longe disso, é antes uma motivação zetética a que move este deambular entre ruínas, como é próprio do pensar filosófico. A dinâmica dessa "História da Filosofia" é muitas vezes associada a uma luta constante de ideias e perspectivas filosóficas, nomeadamente entre mestres e discípulos ou entre rivais de escolas de pensamento opostas e, por vezes, entre antigos colegas de escola. Mas a "História" não tem que ser uma colecção de anedotas ou de opiniões, ou seja, não tem que ser uma mera doxografia. E muito menos uma doxografia oficial daqueles que venceram. A "História" da Filosofia para ser profícua tem de estar viva e servir como um laboratório, uma máquina conceptual e virtual de possíveis debates futuros, de filiações imprevistas e reveladora de camadas de sentido como se descascássemos uma cebola, devendo nós, por isso, estar preparados para algumas lágrimas. Mas o propósito deste "post" não era reflectir a natureza da história da filosofia, antes falar do nº da "Magazine Littéraire" deste mês de outubro (e ainda há quem diga que Filosofia e Literatura não têm nada a ver!).
Os que já estão familiarizados com esta revista sabem que todos os meses existe um "dossier" dedicado a um certo tema ou autor, e muito frequentemente com bastante interesse para a filosofia. O deste mês é o das "grandes querelas entre filósofos": Aristóteles contra Platão, Santo Agostinho contra Pelágio, Abelardo vs. São Bernardo (a grande Querela dos Universais), Descartes vs. Espinosa, Voltaire contra Rousseau, Rousseau vs. Hume, Nietzsche contra Schopenhauer (discípulo revoltando-se contra o mestre), Husserl versus Heidegger, Bertrand Russell vs. Ludwig Wittgenstein e este contra Popper (a história do tição!), Sartre contra Merleau-Ponty (os males do comunismo) e, ainda, Derrida contra Foucault! A ideia geral é de que embora as oposições sejam geralmente a propósito de diferenças filosóficas de fundo, muitas vezes existem também fricções pessoais (frequentemente precedidas de fortes amizades).

"L’art de la polémique remonte à la plus haute Antiquité. « Polemos [le conflit] est le père de toutes choses et le roi de toutes choses », affirmait Héraclite. Toute l’histoire de la philosophie grecque peut se résumer à une succession de disputes. Oscillant entre débats théoriques et attaques personnelles, entre réfutation et invective, cette pratique de la controverse, longuement rodée dans les dialogues platoniciens, n’a cessé d’échauffer les philosophes. Au milieu du XIXe siècle, Schopenhauer en reformulait les règles et les ruses dans un court traité, joliment intitulé L’Art d’avoir toujours raison. Énumérant trente-huit stratagèmes, le philosophe enseignait comment avoir raison à tout prix en sapant les arguments de l’adversaire et en se montrant de plus mauvaise foi que lui. Après avoir suggéré maintes astuces, feintes et pro­vocations, Schopenhauer conseillait comme ultime recours l’attaque ad personam, en se montrant « dé­sobligeant, hargneux, offensant, grossier ».
Ce dossier du Magazine littéraire se fait l’écho des invectives, insultes, railleries et injures diverses que se sont lancées les philosophes durant deux millénaires. On nous reprochera peut-être de rapporter des chamailleries parfois dignes d’une cour de récréation. « Les polé­mistes me dégoûtent », disait Bernanos, se repentant des éreintements dont il accabla tant de ses contemporains. La polémique, quand elle relève de la manie, est vaine, voire dégradante. Mais elle sait être salutaire quand elle surgit avec à-propos pour aviver le débat. Elle s’apparente alors à une joute où il s’agit moins de terrasser l’adversaire que d’enrichir une réflexion commune.
Ce dossier se veut une illustration du bon usage de la dialectique. Il retrace par le menu les duels les plus fameux, et les plus féconds, de l’histoire de la philosophie. « La controverse est souvent bénéfique à l’un comme à l’autre, du fait qu’ils frottent leurs têtes entre elles, et sert à chacun d’eux à rectifier ses propres pensées, et aussi à concevoir des vues nouvelles », conclut dans son traité Schopenhauer qui, décidément, avait l’art d’avoir toujours raison."

Jean-Louis Hue, "Des bienfaits de la controverse", Magazine Littéraire, nº 468, Octobre 2007.

O clássico "Qu'est-ce que la philosophie?"

"Talvez só tarde na vida se possa pôr a questão O que é a filosofia?, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente. De facto a bibliografia é muito escassa. É uma questão que se põe no meio de uma discreta agitação, à meia-noite, quando não há mais nada a perguntar. Antes púnhamo-la, púnhamo-la incessantemente, mas era tudo demasiado indirecto ou oblíquo, demasiado artificial, demasiado abstracto e expúnhamo-la, dominávamo-la de passagem mais do que éramos apanhados por ela. Não éramos suficientemente sóbrios. Tínhamos um desejo excessivo de fazer filosofia, não nos interrogávamos sobre o que ela era, a não ser por exercício de estilo; não tínhamos ainda atingido esse ponto de não-estilo em que se pode finalmente dizer: mas o que era isto que eu andei a fazer durante toda a vida?"

Gilles Deleuze e Félix Guattari, "O que é a filosofia?", tr. Margarida Barahona e António Guerreiro, Editorial Presença, Lisboa, 1992.

Não posso ainda, como é óbvio, na minha ébria juventude responder a uma tal pergunta, mas posso ter a audácia e a impiedade de a colocar, ou, pelo menos, de discutir as suas variações ou os seus avatares, pela forma como fui interpelado pelo "post" sobre "Pessoa e a Filosofia" e que, no mínimo, me "desassossegou".
Porque estas agitações foram desde logo provocadas pelo texto de Bernardo Soares, surgem assim os problemas da fronteira entre Filosofia e Literatura e da legitimidade filosófica de um autor fora da tradição académica. A proposição "filosofia é aquilo que os filósofos fazem" poderia ser tentadora para resolver liminarmente a questão, mas só poderia ter alguma virtude se se soubesse o que é um filósofo e se depois se pudesse descrever aquilo que ele faz. Porém, mesmo que formalmente verdadeira, não deixaria de ser uma proposição inadequada para responder ao problema da definição, pois é flagrante quando se lê essa passagem do Livro do Desassossego que há ali uma dimensão filosófica que nós intuímos, ainda que não saibamos exactamente o que é isso de filosofia. E fácil é induzir, pela experiência que cada um de nós concerteza já teve a ler um livro ou a ver um quadro, que há muito boa gente fora da filosofia, enquanto prática académica, que tem assim momentos de "lucidez filosófica". De facto é isso mesmo que é magistralmente descrito nesse excerto do Bernardo Soares, a experiência de um momento de lucidez, uma iluminação. Há dois dias, durante a Jornada de Homenagem a Fernando Gil, ouvi alguém, que já pensou seriamente estas questões da natureza da filosofia, dizer que a "Filosofia é um esforço de clareza". Parece haver, pois, uma coincidência essencial entre a experiência de Bernardo Soares e o trabalho de um filósofo. Mas há uma diferença, também ela essencial, pois enquanto a "iluminação" de Soares a meio da noite surge como uma revelação instantânea que segundo ele confessa, "foi um momento, e já passou", o "esclarecimento" que constitui o trabalho dos filósofos é um caminho dialéctico (esqueçamos por um momento as conotações "maléficas" do sistema hegeliano ou o que foram as suas interpretações e recuperemos um sentido mais "clássico" do termo dialéctica), um esforço "metódico" de polir, trabalhar os conceitos (criando-os até, para seguir a proposta de Deleuze e Guattari - o que não é o mesmo que os inventar), atraídos por essa luz (não necessariamente monofontal, mas talvez multifocal, ou até, porque não, estroboscópica), a que à falta de outro nome se pode chamar "verdade". (A luz não tem é que ser transcendente, podendo ser imanente a um plano de pensamento; mas esse é outro problema e remeto-vos para o livro citado, que é uma excelente introdução para quem já anda nisto há algum tempo.)
Há, porém, outra perspectiva para o problema das margens da filosofia onde a Literatura se faz, muitas vezes confundir, com a Filosofia. No último século, houve como sabemos alguns pensadores que forçaram a relação do estilo literário com o trabalho da filosofia. É verdade que já lá vão muitos séculos desde o abandono da anonimidade escolástica e que os esforços para universalizar/objectivar o discurso e para anular as fáceis tentações da subjectividade não têm tido muitos frutos no "meio filosófico" (uma espécie de "comunidade científica" na semântica kuhniana). E concedendo que a voz filosófica não pode deixar de ser pessoal, encarnada num corpo e numa experiência de vida, também digo que essa voz pessoal não pode ser confundida com um exercício de estilo que redunde na particularidade dessa experiência (aliás, nem mesmo a literatura pode ser apenas isso), mas que a sua concretude sirva apenas para "situar" e "contemporaneizar" um trabalho filosófico que só pode interessar aos outros e a uma eventual história da filosofia, se tiver uma vocação universal ainda que projectada de um ponto ou pontos de singularidade.
Isto não impede, que se reconheçam certos escritores como mais "filosóficos" do que outros, entre os quais facilmente reconheço alguns heterónimos de Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Goethe, Kafka, Sade (este é facilmente arguível como praticamente um "profissional" da filosofia) ou mesmo alguns poetas, mas esses são por vezes mais músicos do que filósofos. Não me vou ainda pronunciar sobre as relações da Filosofia com a Teologia ou se os místicos medievais são filósofos, para não prolongar demasiado este "post" mas lá irei.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Heidegger



























Deixo aqui o segundo episódio da série "Human All Too Human" da BBC. O próximo será sobre Nietzsche. Tentarei colocá-lo online o mais breve possível.

Heidegger 1, 2, 3, 4

Pessoa e a Filosofia

É tarde e estou cansado. Deixo aqui, por isso, apenas um apontamento. Nos últimos tempos, a par da leitura oportuna de Dostoievski e Gogol (Os "contos" são espectaculares e só custam 5 euros na nova colecção da Biblioteca Independente), reflecti novamente sobre uma questão que me tem surgido com alguma frequência. A da natureza da filosofia e da legitimidade do seu discurso.
Até que ponto é a Filosofia um discurso padronizado, ancorado na história e que obedece a regras hermenêuticas, de interpretação, estabelecidas. Até que ponto existe a "boa" e a "má" Filosofia? Isto para não atirar já com o clássico "O que é a filosofia?". Deve um discurso procurar legitimar-se para ser reconhecido como filosófico? Pergunto isto depois de, há pouco, ter lido uns trechos de Pessoa. É que me parece, a par de Dostoievki e Gogol, que Pessoa estará muito mais perto de descobrir alguma coisa do que muitos filósofos. Aqui talvez tivéssemos mesmo de colocar a questão da especificidade do discurso filosófico e da sua distinção da literatura e de um certo exteriorizar das emoções. Mas eu pergunto, não poderá a filosofia ser apenas uma voz pessoal, ancorada na experiência (porque não empírica?) da vida, transmitida de todas as formas possíveis e imaginárias, dirigida à humanidade sem com isso se preocupar muito, desinteressadamente, e não um discurso legitimado pela história e tradição? A filosofia, a meu ver, nasce porque tem que nascer em cada um. Uns mais do que outros, são questionados. As respostas surgem e são escritas, legadas à humanidade. A humanidade aceita ou rejeita, e uns sobrevivem, outros não. Os que sobrevivem, são os que fazem parte da História. Mas que forma deve ter este discurso? Enfim, tem que ter forma? É Pessoa filósofo? Será o misticismo medieval Filosofia? Ou será que a Filosofia é exclusivamente uma analítica moderna?

Deixo-vos o trecho que li:

«De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo qanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, cmo numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minha ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógivos, não forma, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a uma ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depis de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão dificil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. não sei se estou com frebre, como sinto, se deixei de ter febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranaha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a conciência - e acordo agora no meio da ponte debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruasnovas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os movéis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não forma também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palvra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.»

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, §39

sábado, 6 de outubro de 2007

Sartre é cool!

Para abrir as hostilidades preferi postar aqui alguma coisa sobre Sartre. Para alguns, mas talvez não todos, foi audível outrora a magna sentença académica de que "o Sartre-filósofo não vale nada". Não vale a pena conhecer a origem da inspiração (que deu a entender, entre muitas outras coisas que Descartes ou Kant seria responsável por uma calamidade filosófica de proporções "egofalologocêntricas"), mas serve a referência para não começarmos este blog sem fazer uma menção, ainda que silenciosa, a uma das figuras mais queridas da nossa formação académica (e que, pelos vistos, se mantém obsessivamente no nosso imaginário).
É, pois, com esta imagem em mente, que coloco aqui, simbolicamente, um episódio da série da BBC "Human all too human". A série compõe-se de três episódios sobre três figuras que, senão marginais na história da filosofia (uma delas não o é de facto), são altamente subversivas nas propostas. São, as três ícones de um certo pensamento contra-corrente, duro, livre (o que é, admitamos, discutível). Essas figuras são Nietzsche, Heidegger e Sartre. Heidegger ainda foi um filósofo recorrente na formação filosófica conimbricense; já Nietzsche constituiu sempre um enigma tal dado o contraste entre a força da sua evocação entre todos, e a sua ausência de qualquer currículo, como uma qualquer sala fechada da qual saiam, de tempos a tempos, misteriosos, e apelativos, sons, mas cuja entrada parecia proibida por uma razão nem sempre explicada; Sartre foi, como já se viu, marginalizado. A forma como sempre se lhe referiu o discurso dominante, superior, sério, importante, contra um filósofo que se terá sempre enganado, e que não era senão uma cópia do original alemão (leia-se, Heidegger), marcou, tacitamente, a imagem que dele se cultivou durante algum tempo.
Não pretendo alongar-me mais com esta introdução. Os restantes episódios serão igualmente postados no blog. A ordem é a supracitada, mas subverto-a como um acto de rebeldia, tardio eu sei, mas nunca tarde demais.

"Contra-historiadores da filosofia de todos os países, só mais um esforço!"

Episódio Sartre

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Abertura das passagens

Ao contrário do que possa dar a entender o título deste "post", isto não é tanto uma abertura como um convite à abertura das passagens, pois, na verdade, esta só acontecerá de cada vez que decidirmos partilhar esses portais ou essas brechas com que nos formos deparando nos nossos "caminhos que não levam a lado nenhum" (ou "caminhos da floresta" - como lhes queiram chamar). E, então, este blog será um espaço aberto e a abrir, pois nele vão aparecer trilhos e pistas concorrentes, tangentes, perpendiculares ou, talvez, por vezes, simplesmente assimptóticos, mas sempre disponíveis para o debate e esperemos que deles se possam derivar outros umbrais e outros atalhos que, por sua vez, se desmultipliquem exponencialmente num ritmo maior que o do hipertexto: o do pensamento.
Não se esconde que os caminhos a percorrer se enviesam já sobre ruínas: as da nossa formação histórico-filosófica. E nem se arroga aqui um projecto de eliminação das ruínas nem de ilusória reedificação. Antes se propõe continuar as escavações nos sítios que ficaram por explorar, para encontrar talvez outras passagens - subterrâneas, secretas - ou voltar a encontrar as demasiado expostas, mas que é importante voltar a atravessar para que a sua claridade não se transforme em obnubilação.
Que os trabalhos comecem!

[Ilus: Salvator Rosa, "Demócrito em Meditação" (c.1650),
Statens Museum for Kunst, Copenhaga]