"Talvez só tarde na vida se possa pôr a questão O que é a filosofia?, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente. De facto a bibliografia é muito escassa. É uma questão que se põe no meio de uma discreta agitação, à meia-noite, quando não há mais nada a perguntar. Antes púnhamo-la, púnhamo-la incessantemente, mas era tudo demasiado indirecto ou oblíquo, demasiado artificial, demasiado abstracto e expúnhamo-la, dominávamo-la de passagem mais do que éramos apanhados por ela. Não éramos suficientemente sóbrios. Tínhamos um desejo excessivo de fazer filosofia, não nos interrogávamos sobre o que ela era, a não ser por exercício de estilo; não tínhamos ainda atingido esse ponto de não-estilo em que se pode finalmente dizer: mas o que era isto que eu andei a fazer durante toda a vida?"
Gilles Deleuze e Félix Guattari, "O que é a filosofia?", tr. Margarida Barahona e António Guerreiro, Editorial Presença, Lisboa, 1992.
Não posso ainda, como é óbvio, na minha ébria juventude responder a uma tal pergunta, mas posso ter a audácia e a impiedade de a colocar, ou, pelo menos, de discutir as suas variações ou os seus avatares, pela forma como fui interpelado pelo "post" sobre "Pessoa e a Filosofia" e que, no mínimo, me "desassossegou".
Porque estas agitações foram desde logo provocadas pelo texto de Bernardo Soares, surgem assim os problemas da fronteira entre Filosofia e Literatura e da legitimidade filosófica de um autor fora da tradição académica. A proposição "filosofia é aquilo que os filósofos fazem" poderia ser tentadora para resolver liminarmente a questão, mas só poderia ter alguma virtude se se soubesse o que é um filósofo e se depois se pudesse descrever aquilo que ele faz. Porém, mesmo que formalmente verdadeira, não deixaria de ser uma proposição inadequada para responder ao problema da definição, pois é flagrante quando se lê essa passagem do Livro do Desassossego que há ali uma dimensão filosófica que nós intuímos, ainda que não saibamos exactamente o que é isso de filosofia. E fácil é induzir, pela experiência que cada um de nós concerteza já teve a ler um livro ou a ver um quadro, que há muito boa gente fora da filosofia, enquanto prática académica, que tem assim momentos de "lucidez filosófica". De facto é isso mesmo que é magistralmente descrito nesse excerto do Bernardo Soares, a experiência de um momento de lucidez, uma iluminação. Há dois dias, durante a Jornada de Homenagem a Fernando Gil, ouvi alguém, que já pensou seriamente estas questões da natureza da filosofia, dizer que a "Filosofia é um esforço de clareza". Parece haver, pois, uma coincidência essencial entre a experiência de Bernardo Soares e o trabalho de um filósofo. Mas há uma diferença, também ela essencial, pois enquanto a "iluminação" de Soares a meio da noite surge como uma revelação instantânea que segundo ele confessa, "foi um momento, e já passou", o "esclarecimento" que constitui o trabalho dos filósofos é um caminho dialéctico (esqueçamos por um momento as conotações "maléficas" do sistema hegeliano ou o que foram as suas interpretações e recuperemos um sentido mais "clássico" do termo dialéctica), um esforço "metódico" de polir, trabalhar os conceitos (criando-os até, para seguir a proposta de Deleuze e Guattari - o que não é o mesmo que os inventar), atraídos por essa luz (não necessariamente monofontal, mas talvez multifocal, ou até, porque não, estroboscópica), a que à falta de outro nome se pode chamar "verdade". (A luz não tem é que ser transcendente, podendo ser imanente a um plano de pensamento; mas esse é outro problema e remeto-vos para o livro citado, que é uma excelente introdução para quem já anda nisto há algum tempo.)
Há, porém, outra perspectiva para o problema das margens da filosofia onde a Literatura se faz, muitas vezes confundir, com a Filosofia. No último século, houve como sabemos alguns pensadores que forçaram a relação do estilo literário com o trabalho da filosofia. É verdade que já lá vão muitos séculos desde o abandono da anonimidade escolástica e que os esforços para universalizar/objectivar o discurso e para anular as fáceis tentações da subjectividade não têm tido muitos frutos no "meio filosófico" (uma espécie de "comunidade científica" na semântica kuhniana). E concedendo que a voz filosófica não pode deixar de ser pessoal, encarnada num corpo e numa experiência de vida, também digo que essa voz pessoal não pode ser confundida com um exercício de estilo que redunde na particularidade dessa experiência (aliás, nem mesmo a literatura pode ser apenas isso), mas que a sua concretude sirva apenas para "situar" e "contemporaneizar" um trabalho filosófico que só pode interessar aos outros e a uma eventual história da filosofia, se tiver uma vocação universal ainda que projectada de um ponto ou pontos de singularidade.
Isto não impede, que se reconheçam certos escritores como mais "filosóficos" do que outros, entre os quais facilmente reconheço alguns heterónimos de Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Goethe, Kafka, Sade (este é facilmente arguível como praticamente um "profissional" da filosofia) ou mesmo alguns poetas, mas esses são por vezes mais músicos do que filósofos. Não me vou ainda pronunciar sobre as relações da Filosofia com a Teologia ou se os místicos medievais são filósofos, para não prolongar demasiado este "post" mas lá irei.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, "O que é a filosofia?", tr. Margarida Barahona e António Guerreiro, Editorial Presença, Lisboa, 1992.
Não posso ainda, como é óbvio, na minha ébria juventude responder a uma tal pergunta, mas posso ter a audácia e a impiedade de a colocar, ou, pelo menos, de discutir as suas variações ou os seus avatares, pela forma como fui interpelado pelo "post" sobre "Pessoa e a Filosofia" e que, no mínimo, me "desassossegou".
Porque estas agitações foram desde logo provocadas pelo texto de Bernardo Soares, surgem assim os problemas da fronteira entre Filosofia e Literatura e da legitimidade filosófica de um autor fora da tradição académica. A proposição "filosofia é aquilo que os filósofos fazem" poderia ser tentadora para resolver liminarmente a questão, mas só poderia ter alguma virtude se se soubesse o que é um filósofo e se depois se pudesse descrever aquilo que ele faz. Porém, mesmo que formalmente verdadeira, não deixaria de ser uma proposição inadequada para responder ao problema da definição, pois é flagrante quando se lê essa passagem do Livro do Desassossego que há ali uma dimensão filosófica que nós intuímos, ainda que não saibamos exactamente o que é isso de filosofia. E fácil é induzir, pela experiência que cada um de nós concerteza já teve a ler um livro ou a ver um quadro, que há muito boa gente fora da filosofia, enquanto prática académica, que tem assim momentos de "lucidez filosófica". De facto é isso mesmo que é magistralmente descrito nesse excerto do Bernardo Soares, a experiência de um momento de lucidez, uma iluminação. Há dois dias, durante a Jornada de Homenagem a Fernando Gil, ouvi alguém, que já pensou seriamente estas questões da natureza da filosofia, dizer que a "Filosofia é um esforço de clareza". Parece haver, pois, uma coincidência essencial entre a experiência de Bernardo Soares e o trabalho de um filósofo. Mas há uma diferença, também ela essencial, pois enquanto a "iluminação" de Soares a meio da noite surge como uma revelação instantânea que segundo ele confessa, "foi um momento, e já passou", o "esclarecimento" que constitui o trabalho dos filósofos é um caminho dialéctico (esqueçamos por um momento as conotações "maléficas" do sistema hegeliano ou o que foram as suas interpretações e recuperemos um sentido mais "clássico" do termo dialéctica), um esforço "metódico" de polir, trabalhar os conceitos (criando-os até, para seguir a proposta de Deleuze e Guattari - o que não é o mesmo que os inventar), atraídos por essa luz (não necessariamente monofontal, mas talvez multifocal, ou até, porque não, estroboscópica), a que à falta de outro nome se pode chamar "verdade". (A luz não tem é que ser transcendente, podendo ser imanente a um plano de pensamento; mas esse é outro problema e remeto-vos para o livro citado, que é uma excelente introdução para quem já anda nisto há algum tempo.)
Há, porém, outra perspectiva para o problema das margens da filosofia onde a Literatura se faz, muitas vezes confundir, com a Filosofia. No último século, houve como sabemos alguns pensadores que forçaram a relação do estilo literário com o trabalho da filosofia. É verdade que já lá vão muitos séculos desde o abandono da anonimidade escolástica e que os esforços para universalizar/objectivar o discurso e para anular as fáceis tentações da subjectividade não têm tido muitos frutos no "meio filosófico" (uma espécie de "comunidade científica" na semântica kuhniana). E concedendo que a voz filosófica não pode deixar de ser pessoal, encarnada num corpo e numa experiência de vida, também digo que essa voz pessoal não pode ser confundida com um exercício de estilo que redunde na particularidade dessa experiência (aliás, nem mesmo a literatura pode ser apenas isso), mas que a sua concretude sirva apenas para "situar" e "contemporaneizar" um trabalho filosófico que só pode interessar aos outros e a uma eventual história da filosofia, se tiver uma vocação universal ainda que projectada de um ponto ou pontos de singularidade.
Isto não impede, que se reconheçam certos escritores como mais "filosóficos" do que outros, entre os quais facilmente reconheço alguns heterónimos de Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges, Goethe, Kafka, Sade (este é facilmente arguível como praticamente um "profissional" da filosofia) ou mesmo alguns poetas, mas esses são por vezes mais músicos do que filósofos. Não me vou ainda pronunciar sobre as relações da Filosofia com a Teologia ou se os místicos medievais são filósofos, para não prolongar demasiado este "post" mas lá irei.
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