É tarde e estou cansado. Deixo aqui, por isso, apenas um apontamento. Nos últimos tempos, a par da leitura oportuna de Dostoievski e Gogol (Os "contos" são espectaculares e só custam 5 euros na nova colecção da Biblioteca Independente), reflecti novamente sobre uma questão que me tem surgido com alguma frequência. A da natureza da filosofia e da legitimidade do seu discurso.
Até que ponto é a Filosofia um discurso padronizado, ancorado na história e que obedece a regras hermenêuticas, de interpretação, estabelecidas. Até que ponto existe a "boa" e a "má" Filosofia? Isto para não atirar já com o clássico "O que é a filosofia?". Deve um discurso procurar legitimar-se para ser reconhecido como filosófico? Pergunto isto depois de, há pouco, ter lido uns trechos de Pessoa. É que me parece, a par de Dostoievki e Gogol, que Pessoa estará muito mais perto de descobrir alguma coisa do que muitos filósofos. Aqui talvez tivéssemos mesmo de colocar a questão da especificidade do discurso filosófico e da sua distinção da literatura e de um certo exteriorizar das emoções. Mas eu pergunto, não poderá a filosofia ser apenas uma voz pessoal, ancorada na experiência (porque não empírica?) da vida, transmitida de todas as formas possíveis e imaginárias, dirigida à humanidade sem com isso se preocupar muito, desinteressadamente, e não um discurso legitimado pela história e tradição? A filosofia, a meu ver, nasce porque tem que nascer em cada um. Uns mais do que outros, são questionados. As respostas surgem e são escritas, legadas à humanidade. A humanidade aceita ou rejeita, e uns sobrevivem, outros não. Os que sobrevivem, são os que fazem parte da História. Mas que forma deve ter este discurso? Enfim, tem que ter forma? É Pessoa filósofo? Será o misticismo medieval Filosofia? Ou será que a Filosofia é exclusivamente uma analítica moderna?
Deixo-vos o trecho que li:
«De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo qanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, cmo numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minha ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógivos, não forma, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a uma ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depis de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão dificil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. não sei se estou com frebre, como sinto, se deixei de ter febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranaha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a conciência - e acordo agora no meio da ponte debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruasnovas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os movéis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não forma também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palvra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.»
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, §39
Até que ponto é a Filosofia um discurso padronizado, ancorado na história e que obedece a regras hermenêuticas, de interpretação, estabelecidas. Até que ponto existe a "boa" e a "má" Filosofia? Isto para não atirar já com o clássico "O que é a filosofia?". Deve um discurso procurar legitimar-se para ser reconhecido como filosófico? Pergunto isto depois de, há pouco, ter lido uns trechos de Pessoa. É que me parece, a par de Dostoievki e Gogol, que Pessoa estará muito mais perto de descobrir alguma coisa do que muitos filósofos. Aqui talvez tivéssemos mesmo de colocar a questão da especificidade do discurso filosófico e da sua distinção da literatura e de um certo exteriorizar das emoções. Mas eu pergunto, não poderá a filosofia ser apenas uma voz pessoal, ancorada na experiência (porque não empírica?) da vida, transmitida de todas as formas possíveis e imaginárias, dirigida à humanidade sem com isso se preocupar muito, desinteressadamente, e não um discurso legitimado pela história e tradição? A filosofia, a meu ver, nasce porque tem que nascer em cada um. Uns mais do que outros, são questionados. As respostas surgem e são escritas, legadas à humanidade. A humanidade aceita ou rejeita, e uns sobrevivem, outros não. Os que sobrevivem, são os que fazem parte da História. Mas que forma deve ter este discurso? Enfim, tem que ter forma? É Pessoa filósofo? Será o misticismo medieval Filosofia? Ou será que a Filosofia é exclusivamente uma analítica moderna?
Deixo-vos o trecho que li:
«De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo qanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, cmo numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minha ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógivos, não forma, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de subordinações, ou a uma ente falso que julguei meu, por que agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um solitário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais íntimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi somente porque enchi tempo com consciência e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda depis de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do cárcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.
É tão dificil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com que possa defini-lo. não sei se estou com frebre, como sinto, se deixei de ter febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa vila estranaha sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que perdem a memória, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo - desde a nascença e a conciência - e acordo agora no meio da ponte debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incógnita, as ruasnovas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os movéis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciência, o que os grandes homens são com a vida. Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não forma também tentados vencedoramente pelo Demónio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da mónada íntima, da palvra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.»
Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego, §39
2 comentários:
Olha, desde já, obrigado pela partilha deste excerto poderoso do Bernardo Soares, com o qual também já me tinha deparado ao folhear uma recente edição do "Livro do Desassossego". Já agora, há um blog que costuma publicar fragmentos do livro, para quem não quiser pegar nele e lê-lo e uma assentada:
http://fragmentosdodesassossego.blogspot.com/
Porém, as coisas que dizes e as questões que colocaste é que me deixaram desassossegado, mas deixo o comentário para o corpo do blog, já que o propósito é mesmo confrontar os caminhos das nossas reflexões e, porque não, querelarmo-nos um pouco.
Este post também me deixou com um certo desassossego. Pessoa é um provocador, um "desarrumador". O Livro do Desassosego também sempre me pareceu uma fonte inesgotável de problemas filosóficos e de possíveis respostas à questão: "o que é pensar?".
Tentarei entrar na discussão com o cuidado que as tuas questões e o próprio Pessoa merecem.
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