quarta-feira, 18 de março de 2009

Eco e o Superman

A tradução é minha. Não é do original italiano, porque não o tenho, mas da "réplica" francesa.

O Mito do Superman

«De Hércules a Siegfried, de Roland a Pantagruel passando por Peter Pan, o herói dotado de poderes superiores àqueles do comum dos mortais é uma constante da imaginação popular. Muitas vezes, a virtude do herói humaniza-se, e os seus poderes ultra-sobrenaturais não são senão a realização perfeitamente acabada de um poder natural, a astúcia, a rapidez, a habilidade guerreira, até mesmo a inteligência silogística e o sentido de observação no estado puro que se encontra em Sherlock Holmes. Todavia, numa sociedade especialmente nivelada, onde as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia, numa sociedade industrial onde o homem se torna um número no interior de uma organização que decide por ele, onde a força individual, quando não se exerce no seio de uma actividade desportiva, é humilhada face à força da máquina que executa pelo homem e vai até determinar os seus movimentos, numa tal sociedade, o herói positivo deve encarnar, para lá do concebível, as exigências de poder que o cidadão comum alimenta sem poder satisfaze-las.
Superman é o mito tipo para este género de leitores: não é um Terráqueo, aterrou na Terra ainda em criança proveniente do planeta Krypton que uma catástrofe cósmica tinha destruído. O seu pai, um grande sábio, tinha conseguido salvar o seu filho confiando-o a uma nave espacial. Superman cresce na Terra mas é dotado de poderes sobre-humanos. A sua força é praticamente ilimitada, voa no espaço à velocidade da luz, e quando a ultrapassa quebra o muro do tempo e pode transportar-se para outras épocas. Pela simples pressão das suas mãos, ele submete o carvão a uma tal temperatura que ele se transforma em diamante. Em alguns segundos, a uma velocidade supersónica, ele pode deitar abaixo uma floresta inteira, cortar as árvores em tábuas e construir com elas uma vila ou um navio. Pode perfurar as montanhas, levantar um paquete, destruir ou construir barragens; a sua visão de raios X permite-lhe ver através de qualquer corpo a distâncias praticamente ilimitadas, de fundir apenas com o olhar os objectos de metal; outra vantagem muito útil, o seu super-ouvido possibilita-lhe perceber todas as conversas, donde quer que venham. Ele é belo, humilde, generoso e servil, ele dedica a sua vida a perseguir as forças do mal e a polícia tem nele um colaborador infatigável.
Apesar de tudo, é lícito ao leitor identificar-se com a imagem do Superman. Na verdade, este último vive entre os homens sob a falsa identidade do jornalista Clark Kent, um tipo aparentemente medroso, tímido, de inteligência medíocre, um pouco desajeitado, míope, submetido à sua colega Lois Lane, uma mulher dominadora e caprichosa que o despreza, porque ela está perdidamente apaixonada pelo nosso herói. Do ponto de vista narrativo, a dupla identidade do Superman teve uma razão de ser, visto que permite articular de forma extremamente variada o texto das suas aventuras, os equívocos, os golpes de teatro, um certo suspense de romance policial. Mas de um ponto de vista mito-poético, a descoberta é absolutamente genial. Com efeito, Clark Kent encarna exactamente o leitor médio típico, cheio de complexos e desprezado pelos seus semelhantes; assim, por um evidente processo de identificação, qualquer pequeno empregado de não importa que cidade da América alimenta a secreta esperança de ver nascer um dia sob os despojos da sua personalidade, um super-homem capaz de fazer esquecer os seus anos de mediocridade.»

Eco, Umberto, De Superman au surhomme, Grasset, 1993, pp.113-114

sexta-feira, 6 de março de 2009

Entrevista com Gabriel Marcel

Não é muito interessante filosoficamente. Trata-se apenas de uma curiosidade que partilho convosco. Vejam aqui.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Imprensa filosófica - R. Barthes

Saiu hoje um artigo no jornal Público sobre a recente publicação de um diário de Barthes. Neste diário estão relatados os sentimentos do Roland sobre a morte da mãe. Pelos vistos a coisa deu polémica. Não conto porquê para vos aguçar o apetite.
E perguntais vós? E onde está o interesse que motiva, inclusive, um
post no blog? A minha resposta é: em lado nenhum. Mas como sou frequentador de jornais diários, e poucas vezes se vê uma notícia sobre um filósofo ou a filosofia (tirando os artigos do Desidério Murcho), cá está um postzinho para celebrar o acontecimento; depois inauguro um novo tag: imprensa filosófica. Ora tomem!

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Pragmatistas americanos



Porque estamos em maré de vídeos e a América é o mais recente filho pródigo dos países civilizados, partilho um dos programas da série "The Great Philosophers" em que Bryan Magee convida especialistas de renome a falarem de vários filósofos importantes. Neste trata-se do pragmatismo americano e o convidado é o professor da Universidade de Columbia, Sidney Morgenbesser
. O programa é da BBC e é dos anos 80. Está dividido em cinco partes, sendo esta a primeira. As restantes encontram-se aqui: 2, 3, 4, 5.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Richard Rorty

Entrevista com Habermas

Ainda que por vezes um pouco incompreensível...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Hupgreides do blógue

Coloquei, abaixo dos links de sites relevantes, um espaço para revistas. Se conhecerem alguma "botem" lá o link.

Leonardo - Revista de Filosofia Portuguesa.

Descobri esta revista online de Filosofia Portuguesa. É mais uma para o acervo do Passagens. Vejam aqui.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Biblioteca Digital do Instituto Camões

Como é de passagens que este nosso blog trata, convido-vos a "passar" pelo site do Instituto Camões, e verificar a quantidade de textos digitais que a Biblioteca Digital do Instituto já possui. O projecto está muito bem conseguido, os pdfs são uma maravilha; e se muitos de vocês forem tolos como eu sou por vezes, e imprimirem uma obra em papel, vão ver que ela fica perfeita.
O acervo respeita, obviamente, ao contexto luso. Mas tem de tudo. Desde cinema, história, geografia, estudos literários, revistas, literatura e, claro está, filosofia portuguesa (sobretudo estudos). Tem de tudo! Dêem lá uma saltada que vale a pena.

Da chamada filosofia

«Há ideias mais lusas do que outras; e, se meditarmos bem nos caracteres que apresenta e nas consequências que provoca, não podemos deixar de reconhecer como das mais ricas em lusismo a de certas construções filosóficas que vão andando cada vez mais em moda. Tomou-se a filosofia como um entretenimento literário, como uma divagação tanto menos perigosa e de tanto menos responsabilidade pelo que respeita ao conteúdo dos artigos, quanto é certo que o leitor, porque de pensamento se trata, está sempre disposto a atribuir a dificuldade de percepção clara a defeitos seus - a uma falta de cultura especializada e a uma ignorância de vocabulário filosófico; além disso, um conto e um romance são para o público produções importantes e vivas que interessam à marcha do mundo e à conversa das reuniões familiares - ao passo que um escrito de filosofia se pode perfeitamente pôr de lado ou percorrer com mediana atenção. De modo que a união destas duas correntes, a que mana de si próprios e supõe a filosofia um ramo de literatura de magazine e a que provém dos leitores e olha a filosofia como uma actividade em que são permitidas todas as fantasias e combinações obscuras, tem levado alguns moços com vocação de pensador a abandonar os únicos caminhos seguros, a desprezar toda a espécie de preparação séria, a lançarem-se, com plena confiança na ignorância sua e alheia, numa retórica dia a dia mais oca e desonesta.
Escreve-se de filosofia sem se terem aprendido, com a humildade e o zelo a requerer, o vocabulário essencial, a morfologia elementar, a linguagem, digamos, e os princípios de trabalho que todos os pensadores têm conhecido e usado; tomam-se as expressões num sentido que a tradição filosófica de nenhum modo autoriza, confundindo-se a cada passo as de aspecto exterior mais semelhante; e há grandes mestres de pensamento que parecem não ter lido nos seus anos de aprendizagem os bons compêndios dos bons ensinos secundários. Corre ainda a ideia pitoresca de que se pode construir filosofia sem uma educação científica profunda e uma informação muito sólida dos resultados a que vão chegando as diferentes ciências; moços e velhos pensadores com ligeireza se dispensam de saber como funcionam a geometria analítica ou como se faz uma ivestigação biológica; os conhecimentos que se têm de física ou de química, quando não datam de há uma ou duas dezenas de anos, são apressadmente colhidos em resumos de jornais ou revistas do electricista amador; quando se vai mais longe lêem-se, escolasticamente, comentários, jamais se recorrendo ao livro ou à comunicação do que propôs a teoria ou informou dos resultados da experiência. Se acrescentaros a isto que o jovem filósofo, ao sair do seu curso ou ao dar por terminados os seus estudos prévios, se abalança à tarefa de screver sem ter lido, os livros essenciais da história da filosofia, quase se limitando a conhecê-los pelos resumos mais ou menos deformantes de Weber ou Bréhier, poderemos então admirar-nos de que as suas prosas venham a ser tomadas a sério e capituladas de pensamento. Tanto mais que existe, para quem se não sente com preparação e força para a filosofia, nem por outro lado com imaginação e poder criador para a literatura, um género humilde, de simples comentário, de nota à margem, um género despreocupado e de parca exigência em matéria de saber e de pensar: o considerativo, aqui presente.»

Agostinho da Silva, «Da chamada filosofia», in
Considerações

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Criação filosófica?

Este texto do Miguel Torga faz-me pensar no olhar que o Filósofo deve ter. Quem escreve este texto, tem esse olhar. Será assim?

A criação de mundo


«Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu a par do mais promissor. (…) Homem de palavras, testemunhei com elas a imagem demorada de uma tenaz, paciente e dolorosa construção reflexiva com o material candente da própria vida.»


Miguel Torga, Do prefácio do autor à tradução francesa, in A criação do mundo, Vol.I, pp.7-8


segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

"Adeus à filosofia"

Desde o início que queria partilhar convosco este texto de E. M. Cioran. E agora, finalmente, aqui vai. Traduzi eu mesma, impulsivamente. E gostaria de saber o que pensam dele.

"Afastei-me da filosofia no momento em que se me tornou impossível descobrir em Kant alguma fraqueza humana, algum tom verdadeiro de tristeza; em Kant e em todos os filósofos. Em relação à música, à mística e à poesia, a actividade filosófica deriva de uma seiva
enfraquecida e de uma profundidade suspeita, que apenas têm valor para os tímidos e os indolentes. Aliás, a filosofia – inquietude impessoal, refúgio no seio de ideias anémicas – é o recurso de todos aqueles que se esquivam à exuberância corruptora da vida. Praticamente todos os filósofos acabaram bem: é o argumento supremo contra a filosofia. O fim do próprio Sócrates não tem nada de trágico: é um mal-entendido, o fim de um pedagogo, – e se Nietzsche naufragou, foi como poeta e visionário: expiou os seus êxtases e não os seus raciocínios.

Não se pode fugir à existência com explicações, apenas se pode suportá-la, amá-la ou odiá-la, adorá-la ou temê-la, nesta alternância de felicidade e de horror que exprime o próprio ritmo do ser, as suas oscilações, as suas dissonâncias, as suas veemências amargas ou alegres.

Quem não está exposto, por surpresa ou por necessidade, a uma derrota irrefutável, quem não ergue então as mãos em súplica para as deixar depois cair mais vazias ainda do que as respostas da filosofia? Dir-se-ia que a sua missão é a de nos proteger enquanto a inadvertência do acaso nos deixa caminhar aquém da desordem e de nos abandonar logo que somos constrangidos a mergulhar nela. E como poderia ser de outro modo, quando vemos que bem pouco do sofrimento da humanidade entrou na filosofia. O exercício filosófico não é fecundo; ele é apenas honroso. Sempre se é impunemente filósofo: um ofício sem destino que preenche de pensamentos volumosos as horas neutras e vagas, as horas refractárias ao Antigo Testamento, a Bach e a Shakespeare. E haverá uma só página em que esses pensamentos se materializaram equivalente a uma exclamação de Job, a um terror de Macbeth ou às alturas de uma cantata? Não se discute o universo; exprime-se. E a filosofia não o exprime. Os verdadeiros problemas não começam senão depois de o ter percorrido ou esgotado, depois do último capítulo de um imenso tomo que coloca o ponto final em sinal de abdicação diante do Desconhecido, onde se enraízam todos os nossos instantes, e com o qual temos que lutar porque ele é naturalmente mais imediato, mais importante do que o pão quotidiano. Aqui o filósofo abandona-nos: inimigo do desastre, ele é sensato como a razão e tão prudente quanto ela. E nós ficamos em companhia de um ancião empestado, de um poeta instruído de todos os delírios e de um músico cujo sublime transcende a esfera do coração. Nós não começamos a viver realmente senão no termo da filosofia, sobre a sua ruína, quando compreendemos a sua terrível nulidade e como era inútil recorrer a ela, quando compreendemos que ela não é de nenhum auxílio.

(Os grandes sistemas, no fundo, são apenas brilhantes tautologias. Qual é a vantagem de saber que a natureza do ser consiste na “vontade de viver”, na “ideia”, ou na fantasia de Deus ou da Química? Simples proliferação de palavras, subtis deslocações de sentido. O que é esquiva-se ao estreitamento verbal e a experiência íntima nada nos desvela para além do instante privilegiado e indizível. Aliás, o próprio ser não é senão uma pretensão do Nada.

Não se define senão por desespero. Temos necessidade de fórmulas; precisamos mesmo de muitas, ainda que seja apenas para dar uma justificação ao espírito e uma fachada ao nada.

Nem o conceito nem o êxtase são operantes. Quando a música nos mergulha até às “intimidades” do ser, subimos rapidamente à superfície: os efeitos da ilusão dissipam-se e o saber reconhece-se nulo.

As coisas que tocamos e aquelas que concebemos são tão improváveis quanto os nossos sentidos e a nossa razão; não estamos seguros senão no nosso universo verbal, perfeitamente maneável – e ineficaz. O ser é mudo e o espírito é tagarela. A isso chama-se conhecer.

A originalidade dos filósofos reduz-se a inventar palavras. Como só há três ou quatro atitudes perante o mundo – e pouco mais ou menos o mesmo número de modos de morrer, – as nuances que as diversificam e as multiplicam sustentam-se somente da escolha de vocábulos, desprovidos de qualquer alcance metafísico.

Somos engolidos pela vertigem de um universo pleonástico, onde interrogações e réplicas se equivalem.)"

in E. M. Cioran, Précis de décomposition, Gallimard, 2005 (1ª ed. 1949), p. 71-74