terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Da chamada filosofia

«Há ideias mais lusas do que outras; e, se meditarmos bem nos caracteres que apresenta e nas consequências que provoca, não podemos deixar de reconhecer como das mais ricas em lusismo a de certas construções filosóficas que vão andando cada vez mais em moda. Tomou-se a filosofia como um entretenimento literário, como uma divagação tanto menos perigosa e de tanto menos responsabilidade pelo que respeita ao conteúdo dos artigos, quanto é certo que o leitor, porque de pensamento se trata, está sempre disposto a atribuir a dificuldade de percepção clara a defeitos seus - a uma falta de cultura especializada e a uma ignorância de vocabulário filosófico; além disso, um conto e um romance são para o público produções importantes e vivas que interessam à marcha do mundo e à conversa das reuniões familiares - ao passo que um escrito de filosofia se pode perfeitamente pôr de lado ou percorrer com mediana atenção. De modo que a união destas duas correntes, a que mana de si próprios e supõe a filosofia um ramo de literatura de magazine e a que provém dos leitores e olha a filosofia como uma actividade em que são permitidas todas as fantasias e combinações obscuras, tem levado alguns moços com vocação de pensador a abandonar os únicos caminhos seguros, a desprezar toda a espécie de preparação séria, a lançarem-se, com plena confiança na ignorância sua e alheia, numa retórica dia a dia mais oca e desonesta.
Escreve-se de filosofia sem se terem aprendido, com a humildade e o zelo a requerer, o vocabulário essencial, a morfologia elementar, a linguagem, digamos, e os princípios de trabalho que todos os pensadores têm conhecido e usado; tomam-se as expressões num sentido que a tradição filosófica de nenhum modo autoriza, confundindo-se a cada passo as de aspecto exterior mais semelhante; e há grandes mestres de pensamento que parecem não ter lido nos seus anos de aprendizagem os bons compêndios dos bons ensinos secundários. Corre ainda a ideia pitoresca de que se pode construir filosofia sem uma educação científica profunda e uma informação muito sólida dos resultados a que vão chegando as diferentes ciências; moços e velhos pensadores com ligeireza se dispensam de saber como funcionam a geometria analítica ou como se faz uma ivestigação biológica; os conhecimentos que se têm de física ou de química, quando não datam de há uma ou duas dezenas de anos, são apressadmente colhidos em resumos de jornais ou revistas do electricista amador; quando se vai mais longe lêem-se, escolasticamente, comentários, jamais se recorrendo ao livro ou à comunicação do que propôs a teoria ou informou dos resultados da experiência. Se acrescentaros a isto que o jovem filósofo, ao sair do seu curso ou ao dar por terminados os seus estudos prévios, se abalança à tarefa de screver sem ter lido, os livros essenciais da história da filosofia, quase se limitando a conhecê-los pelos resumos mais ou menos deformantes de Weber ou Bréhier, poderemos então admirar-nos de que as suas prosas venham a ser tomadas a sério e capituladas de pensamento. Tanto mais que existe, para quem se não sente com preparação e força para a filosofia, nem por outro lado com imaginação e poder criador para a literatura, um género humilde, de simples comentário, de nota à margem, um género despreocupado e de parca exigência em matéria de saber e de pensar: o considerativo, aqui presente.»

Agostinho da Silva, «Da chamada filosofia», in
Considerações

2 comentários:

HB disse...

Vou começar a postar coisas portuguesas. Preparem-se!

Zé Gato disse...

Hum... Será que o velho Agostinho da Silva se estava a referir a essa grande e valorosa pseudo-corrente de qualquer coisa que não se sabe bem de que é, eles estão por todo o lado, designada por pós-modernismo? Estarei a ser injusto com os pobres pós-modernistas? Hum... Poderá o pós-modernismo ser ligado a uma inerente atitude displicente face à ciência e ao rigor da investigação científica? Deixo a pergunta.. Por outro lado, será este texto uma crítica a uma metodologia de ensino filosófico mais enciclopedista? (alguém se lembra de umas certas aulas em que o discente se preocupava mais em falar sobre os textos dos grandes comentadores, como a paideia de Werner Jaeger?) Quais terão sido os resultados desta metodologia de ensino na produção filosófica de hoje? Terá a filosofia capacidade de intervenção na sociedade de hoje sem que os seus agentes se procurem enraizar em áreas do conhecimento distintas da própria filosofia como é entendida hoje? Para terminar, alguém estará interessado no que esta filosofia tem para dizer, para além dos seu próprios agentes? E terá a filosofia hoje alguma margem de intervenção mais para além da periclitante permanência (ainda) nos programas do ensino secundário?