domingo, 31 de agosto de 2008

Os americanos e a filosofia analítica

Uma das tentações mais imediatas ao falar de filosofia americana (pelo menos para mim) é associá-la à Filosofia Analítica. Esta associação é legítima, num certo sentido, mas pode ser contraproducente se a tomarmos como uma identificação. Com efeito, grande parte da filosofia que se pratica nos EUA, hoje em dia, como aliás em todo o mundo anglo-saxónico e, a pouco e pouco, também na velha Europa (e Portugal não é excepção), pode incluir-se nesse âmbito cada vez maior, mas também cada vez menos bem definido da "Filosofia Analítica". Pois se na primeira metade do século XX, sobretudo nas décadas de 30 e 40, se conseguia identificar a Filosofia Analítica com um método, estilo e temas bem definidos - o carácter lógico-linguístico do filosofar e a análise do sentido e da referência dos enunciados científicos -, neste início de século XXI o conteúdo temático desse estilo, que continua a privilegiar o rigor racional e analítico, alargou-se a todos os temas tradicionais da filosofia, incluindo aqueles que a princípio recusou (nomeadamente a Metafísica, a Moral, a Política e mesmo a História da Filosofia) para dela se distanciar. Pode assim dizer-se que a maior parte dos filósofos (profissionais) americanos praticam filosofia num estilo "analítico", mas nunca que a filosofia americana (se esta existe) é analítica.
Desde logo, as origens da Filosofia Analítica encontram-se na Velha Europa de Frege, Russel, Moore e Wittgenstein, ainda que desde o início tivesse havido uma "insularidade" própria do movimento analítico, já que nasceu propriamente em Inglaterra (Cambridge), mesmo que partindo de filósofos continentais (Frege, Wittgenstein, e, porque não, Bolzano). Mas a oposição Filosofia Analítica/Filosofia Continental só apareceria, na verdade, durante e após a 2ª Guerra Mundial, em virtude do fluxo migratório dos principais pensadores dessa "escola", perseguidos pelo regime Nazi, instalando-se na Grã-Bretanha, mas sobretudo nos EUA. Para trás (no continente) ficavam os filósofos mais conservadores da linha historicista e idealista e alguns vanguardistas, rapidamente silenciados, da linha fenomenológica, para não falar dos que, mesmo nesta linha, se associaram ao regime totalitário. Neste momento sim, começa uma fácil conotação geográfica da filosofia analítica com a filosofia praticada nos EUA, e só a partir daí vão surgir os primeiros pensadores americanos da tradição analítica.
Porém, para ser rigoroso, deve dizer-se que o primeiro grande nome americano da filosofia analítica - W. O. Quine - seria um dos primeiros críticos internos que começavam a transformar a tradição mais conservadora, contribuindo para afastar o carácter mais positivista e restabelecer a dignidade filosófica da metafísica dentro da "ilha inter-atlântica" da Filosofia Analítica (do outro lado do Atlântico, foi por exemplo o inglês Strawson quem contribuíu para a reabilitação da metafísica numa versão pós-wittgensteiniana da Filosofia Analítica centrada na análise da Linguagem Corrente). Outros filósofos americanos apareceram na segunda metade do século XX que contribuíram para transformar o aspecto da Filosofia Analítica e a dominar as atenções que se lhe dirigiam: John R. Searle (formado ainda em Oxford, Inglaterra, e partindo da sua colaboração com J. L. Austin), Saul Kripke, Donald Davidson e Hilary Putnam (focados na lógica modal, teorias da verdade e da referência). O filósofo Richard Rorty contribuiria por sua vez para recuperar uma perspectiva pragmática, mais especificamente americana, e relativizar o estilo e os temas da Filosofia Analítica, numa atitude mais favorável à "Filosofia Continental" e às teorias pós-estruturalistas que dali vinham para perturbar a paz a-histórica e associal dos departamentos americanos de filosofia.
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o assim, se a maior parte da filosofia que se pratica hoje nos EUA ainda é no estilo "analítico", a verdade é que ela não é especificamente americana e, para além disso, muitos americanos contribuíram para a auto-crítica e redefinição da própria Filosofia Analítica. O que não anula o facto de que a maior parte dos grandes nomes da Filosofia Analítica da 2ª metade do séc. XX terem sido precisamente americanos.

Para este brevíssimo comentário muito contribuiu a leitura de uma introdução escrita por John R. Searle no The Blackwell Company to Philosophy, chamada "Contemporary Philosophy in the United States", que é uma sucinta mas muito lúcida reflexão sobre a evolução da filosofia americana recente no contexto da Filosofia Analítica; e um outro livro do suíço Hans-Johann Glock, editado este ano pela Cambridge University Press, chamado "What is Analytic Philosophy?" que, como o próprio nome indica, contribui para que melhor compreendamos - por exemplo eu que pouco ou nada sei sobre ela - o que é e com que problemas se defronta hoje a Filosofia Analítica.

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