(Do fr. "Passages") Locais por onde se atravessa ou se passa, habitualmente, para ir de um lugar para outro; vias, passadouros, passagens de nível, passagens subterrâneas, passagens inferiores, passagens superiores, passagens de testemunho, passagens de avião, passagens de ano, passagens de olhos, passagens bíblicas, passagens ao acto, barcas de passagem, pontos de passagem, passagens de linha...
Há, exactamente, um mês atrás eu falava aqui de um livro de dois autores americanos (T. Cathcart e D. Klein) que se propuseram falar de filosofia e da sua história através de anedotas. Ontem à noite, passei pela Fnac de Coimbra e lá estava o livro, na sua tradução portuguesa, editado pela Dom Quixote (num acesso de megalomania paranóica pensei que talvez a lamentação neste blog de que ainda não havia uma tradução portuguesa tenha tido algum eco) neste mês de Agosto. Seja como for, vi-o muito apressadamente e depois de uma brevíssima busca online apercebi-me de que o mesmo livro, com a mesma capa fora já editado (também este ano) no Brasil, pela editora Objectiva, traduzido por José Rubens Siqueira. Não sei se a versão da Dom Quixote é apenas uma adaptação para o português da metrópole (não sei por quanto tempo me será permitido fazer uma afirmação destas) ou se é uma nova tradução. Confesso que não reparei no nome do tradutor e o site da Dom Quixote não mostra essa informação. Mas para quem quiser ler, já o pode fazer directamente em português.
Update: Entretanto tive a oportunidade de regressar à Fnac e verificar que a tradução é portuguesa e foi feita por Isabel Veríssimo.
Uma das tentações mais imediatas ao falar de filosofia americana (pelo menos para mim) é associá-la à Filosofia Analítica. Esta associação é legítima, num certo sentido, mas pode ser contraproducente se a tomarmos como uma identificação. Com efeito, grande parte da filosofia que se pratica nos EUA, hoje em dia, como aliás em todo o mundo anglo-saxónico e, a pouco e pouco, também na velha Europa (e Portugal não é excepção), pode incluir-se nesse âmbito cada vez maior, mas também cada vez menos bem definido da "Filosofia Analítica". Pois se na primeira metade do século XX, sobretudo nas décadas de 30 e 40, se conseguia identificar a Filosofia Analítica com um método, estilo e temas bem definidos - o carácter lógico-linguístico do filosofar e a análise do sentido e da referência dos enunciados científicos -, neste início de século XXI o conteúdo temático desse estilo, que continua a privilegiar o rigor racional e analítico, alargou-se a todos os temas tradicionais da filosofia, incluindo aqueles que a princípio recusou (nomeadamente a Metafísica, a Moral, a Política e mesmo a História da Filosofia) para dela se distanciar. Pode assim dizer-se que a maior parte dos filósofos (profissionais) americanos praticam filosofia num estilo "analítico", mas nunca que a filosofia americana (se esta existe) é analítica. Desde logo, as origens da Filosofia Analítica encontram-se na Velha Europa de Frege, Russel, Moore e Wittgenstein, ainda que desde o início tivesse havido uma "insularidade" própria do movimento analítico, já que nasceu propriamente em Inglaterra (Cambridge), mesmo que partindo de filósofos continentais (Frege, Wittgenstein, e, porque não, Bolzano). Mas a oposição Filosofia Analítica/Filosofia Continental só apareceria, na verdade, durante e após a 2ª Guerra Mundial, em virtude do fluxo migratório dos principais pensadores dessa "escola", perseguidos pelo regime Nazi, instalando-se na Grã-Bretanha, mas sobretudo nos EUA. Para trás (no continente) ficavam os filósofos mais conservadores da linha historicista e idealista e alguns vanguardistas, rapidamente silenciados, da linha fenomenológica, para não falar dos que, mesmo nesta linha, se associaram ao regime totalitário. Neste momento sim, começa uma fácil conotação geográfica da filosofia analítica com a filosofia praticada nos EUA, e só a partir daí vão surgir os primeiros pensadores americanos da tradição analítica. Porém, para ser rigoroso, deve dizer-se que o primeiro grande nome americano da filosofia analítica - W. O. Quine - seria um dos primeiros críticos internos que começavam a transformar a tradição mais conservadora, contribuindo para afastar o carácter mais positivista e restabelecer a dignidade filosófica da metafísica dentro da "ilha inter-atlântica" da Filosofia Analítica (do outro lado do Atlântico, foi por exemplo o inglês Strawson quem contribuíu para a reabilitação da metafísica numa versão pós-wittgensteiniana da Filosofia Analítica centrada na análise da Linguagem Corrente). Outros filósofos americanos apareceram na segunda metade do século XX que contribuíram para transformar o aspecto da Filosofia Analítica e a dominar as atenções que se lhe dirigiam: John R. Searle (formado ainda em Oxford, Inglaterra, e partindo da sua colaboração com J. L. Austin), Saul Kripke, Donald Davidson e Hilary Putnam (focados na lógica modal, teorias da verdade e da referência). O filósofo Richard Rorty contribuiria por sua vez para recuperar uma perspectiva pragmática, mais especificamente americana, e relativizar o estilo e os temas da Filosofia Analítica, numa atitude mais favorável à "Filosofia Continental" e às teorias pós-estruturalistas que dali vinham para perturbar a paz a-histórica e associal dos departamentos americanos de filosofia. Sendo assim, se a maior parte da filosofia que se pratica hoje nos EUA ainda é no estilo "analítico", a verdade é que ela não é especificamente americana e, para além disso, muitos americanos contribuíram para a auto-crítica e redefinição da própria Filosofia Analítica. O que não anula o facto de que a maior parte dos grandes nomes da Filosofia Analítica da 2ª metade do séc. XX terem sido precisamente americanos.
Para este brevíssimo comentário muito contribuiu a leitura de uma introdução escrita por John R. Searle no The Blackwell Company to Philosophy, chamada "Contemporary Philosophy in the United States", que é uma sucinta mas muito lúcida reflexão sobre a evolução da filosofia americana recente no contexto da Filosofia Analítica; e um outro livro do suíço Hans-Johann Glock, editado este ano pela Cambridge University Press, chamado "What is Analytic Philosophy?" que, como o próprio nome indica, contribui para que melhor compreendamos - por exemplo eu que pouco ou nada sei sobre ela - o que é e com que problemas se defronta hoje a Filosofia Analítica.
[Excerto de "American Philosopher", um documentário de Phillip McReynolds]
Não obstante estarmos em plena "silly season", decidi começar uma série de "posts" (a que vos convido a participar e a contribuir com o que puderem, claro) sobre um tema que me tem vindo a intrigar desde há uns tempos. O que sabemos nós da filosofia americana? Os EUA são (ainda) a maior potência mundial a muitos níveis e, no entanto, é legítimo perguntar: haverá uma filosofia americana ou apenas filosofia na América (dúvida semelhante à que se põe quanto à filosofia em Portugal)? Quem são (quem foram) os grandes filósofos americanos ou quem são os grandes filósofos que pensaram na América e/ou a partir da América? (Desculpem-me os restantes países do continente americano, mas uso América no tradicional sentido de EUA.) Nomes como Peirce, Quine, Putnam, Rorty ou Davidson não são absolutamente desconhecidos, mas quem falou alguma vez de Saul Kripke no nosso curso conimbricense (sabendo que em alguns institutos de filosofia do nosso país ele é considerado um dos maiores filósofos do século XX)? Porque é que apesar de tudo isto, os nomes famosos da filosofia francesa (e o "French Thought" por alguma razão obteve esta designação) da segunda metade do século XX tiveram de passar pelas universidades americanas para se ouvir falar deles? Concerteza que haverá um enorme número de razões sociais, económicas e políticas que explicam a força de legitimação das universidades americanas, mas com tudo isso e/ou apesar disso, qual a força da expressão do pensamento americano na intelligentsia europeia? A analogia (apesar das vertigens que esta promete) com o império romano salta-me logo ao espírito, pois apesar de dominar o mundo nos séculos finais do mundo antigo, que filosofia original produziu, que grandes filósofos fez nascer que não fossem versões latinas de uma ou duas escolas de pensamento grego? (Não estou a querer diminuir a importância de Séneca, Lucrécio, Epicteto, Cícero ou mesmo Marco Aurélio ou dos comentadores de Aristóteles como Alexandre de Afrodísia e Clemente de Alexandria, mas não foram eles actualizações de escolas gregas num diferente contexto político e civilizacional?) Nestes tempos conturbados e confusos onde alguns viram o fim dos tempos modernos, qual foi/é/poderá vir a ser o contributo do pensamento americano para a história ou histórias da filosofia?