À primeira vista trivial, o tema do hábito que têm os seres humanos de se vestir é verdadeiramente um mistério. O Génesis, por mais paradoxal que possa pareceer, terá porventura a melhor explicação científica para o facto e sua origem.
O certo é que se tende a eleger a linguagem como a marca da hominização, mas o recurso aos paramentos também tem qualquer coisa de extraordinário.
Grande observador, Michel de Montaigne (1533-1592) não deixou de se intrigar com tão peculiar costume, que, na verdade, pôde ter consequências notáveis na história da humanidade. Por mais evasivo que possa parecer este ensaio "De l'usage de se vêtir", nele se entrevêem algumas reflexões bem pertinentes. Por exemplo, quando Montaigne diz: "entre a minha forma de vestir e a de um camponês da minha terra encontro bem maior distância do que da forma deste à de um homem vestido apenas da sua pele".
Dir-se-á que no séc. XVI o mundo era diferente, as classes eram mais marcadas e o traje era um dos símbolos de uma classe. Mas hoje, apesar das mudanças, o significado de um fato é ainda abissal. Se os homens andassem nus, será que haveria desigualdades sociais, ou pelo menos as mesmas?
Perdoem-me este disparate, Montaigne não tem culpa. A prova está em http://www.bribes.org/trismegiste/es1ch35.htm.
5 comentários:
Desculpa-me este comentário tão tardio, mas à desorganização natural e ao atropelamento de situações da minha vida, juntou-se uma certa acedia e, por isso, só agora me resolvi a escrever estas breves linhas.
Desde já obrigado por te lembrares deste Filósofo assistemático e contra-académico que também passou despercebido e em silêncio no nosso curso, se exceptuarmos uma ou outra referência, derivada de outros interesses e outros pensadores por ele influenciados. O Renascimento, aliás, foi completamente ignorado nas minhas aulas de Filosofia Moderna, por razões que conhecem, e o cepticismo, tanto o antigo como o moderno, não tiveram o lugar próprio em nenhuma disciplina de vocação histórico-filosófica, a não ser como posição a rebater numa ou noutra cadeira e ressalvando, para não cometer injustiças, a posição original de um cepticismo hiperbólico na própria cadeira de Filosofia do Conhecimento.
Mas, voltando ao inventor dos Ensaios e ao tema dos paramentos que aqui, com ele, trouxeste, acho que uma parte da resposta está de facto no livro do Génesis, como indicaste. No entanto, acho que o essencial do episódio genético de Adão e Eva - e já agora, porque é aí que está a chave do problema, da Árvore da Sabedoria, de onde os ilustradores da história tiraram as folhas que serviriam para cobrir a nudez do casal - corrobora a tese da linguagem como marca principal da hominização, ao demonstrar o carácter simbólico do vestuário e da necessidade de o homem se cobrir. Pois o "fato" de Montaigne, como o de qualquer mortal, tem uma natureza essencialmente linguística e é por isso que serve para simbolizar, mas também para diabolizar. O que me leve a responder à tua pergunta com outra pergunta: será que um homem poderia andar nú?
Claro que pode parecer que estou a descurar aspectos mais pragmáticos ou mais tecnológicos do vestuário, pois não deixa de ser uma ferramenta que permitiu e permite ao homem lutar pela sua sobrevivência, mas também esses aspectos estão intimamente ligados a essa natureza linguística que divide o homem dos outros animais.
Já a desigualdade social parece ter nascido de uma divisão do trabalho nas sociedades primitivas, que dificilmente poderíamos separar de uma necessidade de sobrevivência e de uma distribuição das relações de poder. O vestuário aparece então aí como mais um símbolo entre outros que permite o reconhecimento e a diferenciação nesse esquema alargado das relações de poder e divisão do trabalho.
As desigualdades sociais não parecem portanto facilmente elidíveis, por serem inerentes à estrutura social, nem os paramentos me parecem poder ser obviados pelos homens. Claro que Desmond Morris poderia sempre discordar de tudo isto, eheh.
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lolikneri havaqatsu
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